O Centro de Arte de São João da Madeira tem em exibição, até final de março, um conjunto de imagens da autoria de médicos que têm na fotografia uma fuga às funções profissionais em que se deparam com vida e morte.
A análise é de Maria do Carmo Serén, que, enquanto investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” de Faculdade de Letras da Universidade do Porto e comissária da exposição, este sábado à tarde leva à Torre da Oliva os respetivos 13 autores, para uma conversa com o público.
“Esta mostra pode ser vista como documental, como um estudo para o olhar que se fez observador dos limites das fronteiras entre a vida e a morte, e que procura na fotografia uma ponderada fuga às funções que o impedem de imaginar a perfeição que o nosso imaginário reclama”, diz a curadora.
Lembrando que o investigador (Medicina, Histologia), pintor e resistente à ditadura Abel Salazar (1889-1946) defendia “que um médico que só sabe medicina não é um bom médico”, Maria do Carmo Serén acrescenta: “Estes médicos fotógrafos querem mais, querem usar a fotografia que substituiu a filosofia, na condição de médicos da civilização. E porque não? Afinal, a sua própria formação clínica é feita para superar as leis da Natureza”.
Eugénio Silva, Filipe Carneiro, Guilherme Figueiredo, Guilhermina Reis, João Mota da Costa, Luís Campos, Luís Miguel Veloso, Manuel Valente Alves, Manuela Casal, Maurício Soares, Nelson Marmelo, Nuno Félix da Costa e Teresa Cabral são os médicos cujas fotografias se podem apreciar na galeria da Torre da Oliva.
No caso de Eugénio Silva, as suas imagens refletem um “pendor antropológico”, expresso em figuras e tradições de Marrocos a Peru, passando por Moçambique, China e Tailândia, enquanto Filipe Carneiro denuncia um olhar mais técnico, até “industrial”, numa abordagem que, entre o fotojornalismo e a cinematografia, se faz de “geometria, linhas e, em especial, oblíquas”.
Guilherme Figueiredo, por sua vez, dá a conhecer um projeto que, de 2007 a 2019, circulou por várias salas: chama-se “Alegria e Sofrimento” e, num estilo pós-moderno, é constituído por uma “austera série de retratos a preto e branco de doentes com diversas patologias reumáticas”.
Já Guilhermina Reis “mostra-se como pediatra em belas fotos de retrato de crianças da Guiné e Madagáscar, doentes suas acompanhadas com as mães”, e João Mota da Costa, especialista em cirurgia plástica das mãos, exibe a série “Dissecar”, em que apresenta “as instalações, antigas e modernas, de institutos nacionais de anatomia, relevando arquivos, simulacros de funções corporais para aprendizagem, esqueletos e caveiras, e frascos com amostras em formol”.
Sobre Luís Campos, Maria do Carmo Serén diz que a coleção de imagens “Transurbana” denuncia “o refechamento em si”, propondo “a paisagem da cidade isolada na sua territorialidade fechada, à espera do avanço periférico”, e, sobre o neurologista Luís Miguel Veloso, refere que esse regista doentes que sofreram um Acidente Vascular Cerebral, retratando-os “num espantoso e atento acompanhamento, individualmente ou em grupo”.
As fotografias de Manuel Valente Alves, por sua vez, denunciam “um conceptualismo poético” ao cortar as normas de centralidade e harmonia na série “Uma ideia de paisagem”; Manuela Casal usa a composição para conferir uma chancela estética às suas “fotos de cena de anestesista”; e Maurício Soares prefere o habitat de animais selvagens da tundra e das estepes tropicais, revelando “um olhar marcadamente estético e afetivo” em apontamentos que comprovam a atenção ao momento decisivo, numa “especialidade [fotográfica] difícil”.
Quanto às imagens de Teresa Cabral, desvendam “interiores de palacetes abandonados em início de destruição e gangrena”, numa perspetiva próxima da de Nelson Marmelo, cujo registo irónico contrasta “a escuridão das portas com janelas resplandecentes de luz, em interiores ao abandono”, muitas vezes simbólicos de corpos doentes.
Realçando que a fotografia, embora sendo “a mais completa apresentação da realidade percecionada”, pode refletir uma fuga à realidade, Maria do Carmo Serén termina o descritivo da exposição abordando as imagens do psiquiatra Nuno Félix da Costa, cujas “paisagens oníricas têm ecos de Surrealismo, mas também da explicitação excessiva do Expressionismo na ultrapassagem dos limites”.
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