Em Talhadas, conhecida como a “capital do pedreiro”, há quem ainda não saiba como é que não morreu nos incêndios que lavraram no concelho de Sever do Vouga durante quatro dias e destruíram várias empresas.
Rui Correia abre os portões da carpintaria Perfimade, situada na zona industrial de Talhadas, para mostrar à agência Lusa o cenário de destruição provocado pelas chamas.
Entre os escombros desta empresa familiar, que dava trabalho a cerca de 12 pessoas, há algumas viaturas carbonizadas, máquinas e ferramentas destruídas e chapas da cobertura retorcidas.
O empresário conta que, de uma hora para a outra, o fogo veio e levou o trabalho de uma vida, adiantando que “foi um murro no estômago, mas dos bem fortes”.
“Cerca das duas horas da manhã telefonaram-me a dizer que estava a começar a arder, eu vim para cima, mas quando cheguei aqui já não consegui entrar. As chamas já passavam praticamente de um lado ao outro da zona industrial. O vento era terrível, aquilo veio por aí acima e não houve nada a fazer. Em minutos destruiu tudo”, disse.
Rui Correia fala num prejuízo de cerca de 1,5 milhões de euros, afirmando que tinha um seguro, mas que não cobre “nem uma terça parte do que foi destruído”.
Apesar de tudo, mostra-se esperançoso e já pensa em reerguer a fábrica, com base nas promessas de apoio por parte do Governo.
“Queria ver era isto tudo desaparecer daqui para fora rapidamente, para poder recomeçar a trabalhar e esquecer o que se passou”, disse o empresário, que, neste momento, está a tentar instalar-se num outro local para fazer “algumas coisas mais pequenas e cumprir os compromissos para não perder nenhum cliente”.
Ao redor da zona industrial, a paisagem outrora verde e cheia de vida deu agora lugar a um cenário desolador pintado de negro, com pinhais e eucaliptais queimados, onde ainda permanece um odor intenso a fumo.
No café à entrada de Frágua, onde uma pessoa ficou ferida com gravidade e uma empresa ardeu, discute-se o uso do contra-fogo para combater os incêndios florestais, uma técnica que, segundo a proprietária do estabelecimento, deveria ser usada mais vezes, como no passado.
“Quando era jovem, a gente ia combater os fogos com ramos e metia-se o contra-fogo. Só assim é que a gente acaba um fogo. Eles chocavam um no outro e parava ali”, explica Maria Fernandes.
A empresária conseguiu salvar sozinha a sua casa, apenas com a ajuda de uma mangueira, mas a empresa do cunhado, situada ali ao lado, não teve a mesma sorte. “Eu não tive aqui ninguém. Andei com uma mangueira de volta da casa e a pedir a Deus para me ajudar”, contou.
Também Zulmira Fernandes, moradora na Frágua, diz que viveram momentos de “muita aflição”, adiantando que “não houve um bombeiro” que ajudasse a população.
“Foi o pessoal do lugar que teve de se desenrascar”, contou a mulher que andou a ajudar a “puxar mangueiras e com baldes a tentar apagar o fogo”.
A moradora diz que acordou cerca das 02:00 com um vizinho a bater à porta e já viu tudo em chamas. “O fogo andava por todo o lado. Ele estava aqui e já estava acolá. Uma casa lá adiante viu-se aflita. Ele ia para as terras”, descreveu, afirmando que podia ter sido uma “tragédia das grandes”.
A poucos quilómetros dali, no lugar do Seixo, as chamas chegaram de madrugada e cercaram o lugar com cerca de 15 moradores.
“Ninguém podia passar para cá. Não veio nem família, nem bombeiros. Pensei que morríamos aqui todos sozinhos”, referiu Madalena Rodrigues, que, naquela altura, estava em casa juntamente com os pais do seu genro, um casal de idosos de quem ajuda a tomar conta.
A mulher, de 76 anos, diz que já estava deitada na cama quando ouviu um vizinho “a bater com uma sineta para as pessoas acordarem”, e saiu para a rua.
“Aquilo começou a vir dacolá de cima. Aqueles ramos todos a arder por aí abaixo. Ui Jesus! Só se via lume. Eu até fiquei cheia de medo. Isto era para aqui um pandemónio. Era tanto vento e estoiros acolá para cima”, narrou.
A septuagenária, com algumas dificuldades de mobilidade, conduz-nos para as traseiras da casa a fim de mostrar o galinheiro e um barracão com lenha, que estava encostado à casa principal, e que arderam.
“O fogo não sei como é que não entrou dentro. Foi por causa de uns senhores que botaram umas mangueiras de água”, observou.
Sete pessoas morreram e 161 ficaram feridas devido aos incêndios que atingiram desde domingo sobretudo as regiões Norte e Centro do país e destruíram dezenas de casas.
A Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) contabiliza cinco mortos, excluindo da contagem dois civis que morreram de doença súbita.
A área ardida em Portugal continental desde domingo ultrapassa os 124 mil hectares, segundo o sistema europeu Copernicus, que mostra que nas regiões Norte e Centro já arderam mais de 116 mil hectares, 93% da área ardida em todo o território nacional.
O Governo declarou a situação de calamidade em todos os municípios afetados pelos incêndios dos últimos dias e hoje dia de luto nacional.
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